Equidade e Justiça Social: a luta continua

Jurema Werneck*

“Logo de manhã, bom dia” – assim, trago a nossa memória o amigo e companheiro de luta Arnaldo Marcolino, ex-conselheiro nacional de saúde, que nos deixou recentemente, na madrugada do dia 15. Em sua mensagem, compartilhada no dia 14 de novembro, ele enviou uma música (Amigo é pra essas coisas: Salve! Como é que vai? Amigo, há quanto tempo…), nos propondo a iniciar aquela semana lembrando a velha guarda, como ele disse, e repetindo o trecho da música que diz: “Um apreço não tem preço…”. Ele encerrou a mensagem com um imperativo ético que é, ao mesmo tempo, uma celebração de coletividade: o termo/conceito Ubuntu. Minha homenagem, minha saudade, minha celebração dessa trajetória de compromisso e generosidade: Arnaldo Marcolino presente!

E é preciso reverenciar também Lélia González, que dá nome a esta sala e norte para o nosso ativismo. A voz crítica ao mesmo tempo solidária e generosa nos trouxe até aqui: Lélia Gonzalez presente!

Vou começar pelo avesso: para falar sobre equidade e justiça, vou começar falando de seu oposto – trago o conceito de apartheid. “Famoso” pela experiência trágica da África do Sul, apartheid foi um regime de segregação racial radical naquele país. Mas é preciso lembrar: o termo diz respeito a uma clivagem, uma separação entre humanos (ou entre alguns que se consideravam mais humanos e outros que eram vistos como subhumanos): negros (a maioria) separados de brancos (a minoria) por regimes de violência extrema amparados em leis e em noções distorcidas de direito. No regime da África do Sul, a minoria branca controlava tudo: o Estado e suas instituições, governos e parlamentos, as ferramentas de produção de riqueza e seus lucros. A minoria branca controlava tudo sob a força das armas (a violência, a fome, etc). As lutas da maioria derrubaram o regime depois de 46 anos (1948-1994) e um número incontável de corpos.
Veio a transição e, nela, a liderança da maioria foi reconhecida. Quem acompanha a trajetória da África do Sul como eu, que já estive lá algumas vezes, sabe que falta muito para o estabelecimento da sociedade não racial a que Nelson Mandela se referia. Mas devemos reconhecer que, nesta longa trajetória que ainda resta, a maioria negra tem ao menos uma chance.

Corta para o Brasil de 2022: milhares de jovens negros assassinados, milhões experimentando a fome, um país onde agentes do estado massacram, chacinam, matam, encarceram em volume inaceitável; onde milhares dos nossos morreram desassistidos ou mal assistidos frente à pandemia de Covid-19 nestes tempos que insistem em reeditar a desesperança e o medo.
Neste ano, a maioria ergueu novamente a voz: indígenas, negros, mulheres, pessoas LGBTQIA+, moradoras e moradores das regiões norte e nordeste e das favelas e periferias do sul e do sudeste, do campo, dos quilombos, das florestas, das águas e das cidades, nós enviamos uma mensagem potente de mudança, de repúdio aos retrocessos, de afirmação de nossa humanidade e de reivindicação de um outro país e um outro mundo que precisam existir para que nós possamos existir, para que possamos experimentar de fato a equidade e a justiça social que queremos.

Em resumo: nossa mensagem repete um bordão lançado incansavelmente: nada sobre nós sem nós – esse nós amplo, de indígenas, negros, mulheres, pessoas LGBTQIA+, moradoras e moradores das regiões norte e nordeste e das favelas e periferias do sul e do sudeste, do campo, dos quilombos, das florestas, das águas e das cidades e não apenas homens brancos à esquerda (ou pior, à direita).

Para dar passos na direção da equidade e da justiça, algumas questões são inegociáveis:

a. Participação e protagonismo: ocupação de posições de liderança e capacidade de indução; existência de mecanismos e políticas públicas capazes de enfrentar de forma profunda e consistente os desafios que o racismo e as iniquidades estruturais colocam – o que inclui derrubada da EC 95 e daquilo que Flávia Oliveira chamou de cloroquina fiscal, o tal teto de gastos (que quer dizer desinvestimento público na equidade).
b. Inovação: por que as experiências anteriores não foram capazes de efetivamente romper com o racismo sistêmico e com as iniquidades estruturais. Lembrando que, afinal, estamos no século XXI, onde velhos e novos problemas confluem e demandam respostas atuais e inovadoras Flavia Oliveira, a jornalista, já cantou a pedra em um tuite, destacando a estrutura careta (que quer dizer conservadora, retrógrada), pra dizer o mínimo, do gabinete de transição;
c. Ruptura daquilo que Cida Bento denominou de pacto narcísico da branquitude, que implica inclusive que aqueles e aquelas que são privilegiados e privilegiadas pelo sistema racista cisheteropatriarcal, que não são indígenas, negros, mulheres, pessoas LGBTQIA+, moradoras e
moradores das regiões norte e nordeste e das favelas e periferias do sul e do sudeste, do campo, dos quilombos, das florestas, das águas e das cidades, explicitem em alto e bom som e em atitudes e ações a sua discordância em relação a este acerto que está sendo montado, onde homens brancos cisheteros do sudeste principalmente se posicionam para dar a última palavra em uma vitória conquistada principalmente por nós.
d. Análises e recomendações detalhadas circularão neste Congresso e eu quero mencionar dois: o Manifesto do I Encontro de Coletivos Negros: avanços e desafios na luta antirracista na saúde coletiva e a Carta do Grupo de Trabalho Racismo e Saúde. Leiam, divulguem, aproveitem!

Por fim: há pessoas que têm feito referência ao meu modo contundente de falar no espaço público nas últimas semanas. Comento aqui com as palavras de Audre Lorde:
Minha resposta ao racismo é raiva. Eu vivi com raiva, a ignorando, me alimentado dela, aprendendo a usá-la antes de ela destruir minhas visões, durante a maior parte da minha vida. Uma vez respondi em silêncio, com medo do peso. Meu medo da raiva não me ensinou nada. Seu medo da raiva não irá te ensinar nada, também.

A raiva é o fogo que ilumina estas reflexões e a certeza de que nós não vamos transigir e negociar a vida e a saúde dos nossos. Somos a maioria!
É preciso enviar uma mensagem forte para aquelas e aqueles que, crescendo no século XXI, exigem que abracemos a radicalidade desta aposta num futuro sem encarceramento em massa, sem assassinatos de jovens negros e de mulheres trans, sem feminicídios, com justiça social e climática, sem armas e pleno de direitos humanos. E termos um governo que espelhe essa maioria, que seja verdadeiramente da e para a maioria, é parte importante das lutas que nos trouxeram até aqui. Esse é o caminho para equidade e justiça social que o Brasil precisa. Não tenham dúvidas: a luta (a nossa luta) continua!

*Diretora da Anistia Internacional.

Nota: Apresentação ao Grande Debate – 13o Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva/Abrasco, 23/11/2022.

Autor: Aliança Pró-Saúde da População Negra

A Aliança Pró-Saúde da População Negra desde 2018 vem se organizando para o enfrentamento do racismo, mobilizando lideranças de diferentes coletivos negros e organizações, estudantes, pesquisadores, profissionais de saúde e afins, atenta à necessidade de políticas efetivas em atenção à saúde da população negra, no país, no Estado e no município de São Paulo.

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