Tago Elewa Dahoma (Thiago Soares)
O declínio do MN enquanto movimentos sociais de impacto junto a sociedade e logo, ao poder público, foi acontecendo ao longo dos anos, sobretudo com a derrocada do PT. Pensando atualmente, organizações como MNU (Movimento Negro Unificado) e Unegro, para dizer das que tiveram maior relevância no pós-1978, existem, mas de qual forma? Quem, destas novas gerações mais influenciadas digitalmente, já ouviu falar destas instituições e de seus trabalhos?
Mas essa foi uma lógica geral a todos os movimentos? Na minha análise, não. O movimento feminista e lgtqia+ ganharam destaque no pós-2013, logo após a retração da pauta do movimento negro. Isto não quer dizer que não havia movimentações intensas destas pautas por mudanças estruturais no país. A aprovação da Lei Maria da Penha, o julgamento sobre a descriminalização do aborto de anencéfalos (2012) e a união estável homoafetiva (2011), ambas julgadas pelo STF com tremendo debate no país, são provas do quanto as organizações sob estas bandeiras estavam fortalecidos no debate. Mas ao contrário do MN, estas foram ações que determinaram um empuxo das organizações e dos movimentos como um todo.
Uma explicação plausível seria da capacidade de financiamento das organizações que defendem pautas feministas e das relações homoafetivas serem mais independentes do governo, tendo captação financeira inclusive de pessoas físicas e de organismos internacionais e multilaterais. Uma capilaridade social com indivíduos de maior poder aquisitivo, com uma retórica muito assentada nas redes sociais, não necessariamente ligadas a grupos/coletivos/organizações também foram aspectos de ganho de espaço na agenda pública.
A atomização das pautas políticas teve impactos em todos os movimentos, de vários espectros políticos, mas saiu na frente quem teve a condição de enxergar essa transição assim como capitalizá-la aos seus interesses, individuais ou coletivos. O “Ninguém me representa” como caldo político disseminou um conjunto de vozes não ouvidas nesta nova arena social, mas não houve uma guinada discursiva, apenas ampliação das vozes.
Esta ascensão das pautas politicamente minorizadas não foi o fim do ativismo para determinados segmentos negros, que sob o campo teórico da interseccionalidade, conseguiu se deslocar dentro destes espaços político-ideológicos em destaque, e defender uma agenda negra sob este viés. O que quero dizer é que os movimentos tanto feminista quanto lgbtqia+ absorveram parte de uma velha guarda, e se tornou paradigma político para uma leva de novos indivíduos, principalmente para os que tiveram contato com as pautas políticas anti-machistas, homofóbicas e racistas por meio da internet, das interações nas plataformas digitais.
É inclusive, por meio delas, que uma pauta sensível da população negra se mantém viva, interagindo, mas envolta em uma gama de informação muito dispersa. As redes não são geridas eficazmente por organizações, mas por indivíduos, que traduzem em suas mídias muitos dos seus desejos e apontamentos. Um paradoxo interessante é que hoje se fala muito mais de racismo na internet como uma pauta de denúncia, mas nossa capacidade de sustentar ações articuladas decaiu muito e isto está intimamente ligado a retração das organizações antirracistas. Nisto nos perguntamos: aos em destaque nas redes sociais são o quê? Militante? Ativista? Entusiasta?
Depende de como fazem o uso de seu capital digital, de como engajam a atenção que recebem para pautas que realmente beneficiem o coletivo. Mas isto ainda é um debate posterior, pois há uma discussão prévia que precisamos fazer.
Podemos dizer que o passado do legado de luta antirracista (luta, não apenas intenções) é muito complicado, o que causa buracos geracionais tremendos e atraso no avanço das discussões. Não sabemos passar o bastão, formar ou educar novos militantes. Isso causa um déficit absurdo, pois boa parte dos ativistas da causa Negra hoje, teve um processo de aprendizagem e entendimento da questão racial por conta própria, muitas vezes cometendo os mesmos erros que os mais velhos cometeram. Por isso, se os mais velhos, geralmente de organizações, não formam, quem forma os mais novos?
Simples: quem tem o capital simbólico e faz o investimento necessário pra influir nestas mentes. As plataformas digitais são um campo minado e também dourado para atrair talentos e também para dimensionar pautas. É, de saída, um espaço de influência branca com uma capacidade de direcionar ações, ideias e pensamentos de pessoas pretas, assim como a tv fez conosco e com nossos pais. Vemos a quantidade enorme de novos influencers com capacidade de arregimentar milhões de jovens, dentre os quais, os de nossas comunidades, irmãos, primas, sobrinhas.. A terem uma percepção equivocada sobre a própria realidade e a partir disso, agirem contra seus próprios interesses. A indivíduos que a partir do que lhes é pago ou do assunto (ou falta dele) em voga, podem marcar uma guinada profunda no pensamento crítico de pessoas muito jovens. Estamos vendo isto, o que aumenta o fosso entre as gerações.
Há pessoas pretas avançando nestes espaços, com mais dificuldade, mas colocando pautas de interesse coletivo negro junto aos seu público. Mas a pergunta que fica é: quanto de suas elaborações e provocações são coletivas? É possível ter interesse coletivo, mas é o nome destas pessoas que viram marcas, portanto, são dois elementos em jogo, na arena. Como separar, ou melhor, aliar o interesse pessoal e coletivo?
Acho que a resposta está nas pontes entre os mais velhos e mais novos. O alcance que as redes projetam nos mais novos e versáteis com o mundo tecnológico sendo usado nos trabalhos de fôlego, contínuo de quem fez e faz muito pelo nosso povo, mas que se encontra emudecido num mundo cada vez mais binário, e com dificuldades de espalhar as sementes do seu trabalho para além da área em que atua. Há várias vertentes muito bem vindas trazendo elementos de Afrika e como proposta de agir e pensar, além de contribuições de nossos mais velhos que pensaram possíveis caminhos pra mudança da nossa realidade, oxigenando assim o ambiente e propondo novos olhares pra este brasil. Trazendo Outras configurações políticas também se rearticulam em pequenas organizações para dar sua contribuição à luta coletiva.
Talvez dê conta da falsa morte do Movimento Negro. Este não vai morrer, não pode. Ágatha, Cláudia, João Pedro, Iago, Amarildo e tantas e tantos precisam que suas mortes não sejam número frio de repartição pública, de falas e escritos digitais sem maiores consequências aos perpetradores destes assassinatos. O MN e suas organizações são a plataforma de eco e pressão para o enfrentamento dessas questões e dezenas de outras que nos atravessam. Porém, é preciso reformular-se. Estes novos tempos de ódio assim o exigem, assim como esta geração vindoura mais conectada, mais individual e com necessidade de ser ensinada assim como ensinar.
O desafio tá lançado para uma nova configuração do Movimento Negro brasileiro. O ponto é: quem vai se sentar pra ouvir quem? Os dados estão sendo jogados e o custo da inaptidão tem nos custado muito caro. Em tempo, sangue e corpos.
Publicado originalmente em https://papiroindomito.com/2020/06/03/e-o-movimento-negro-hoje-cenarios-e-possiveis-caminhos/ dia 03 de junho de 2020.
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