Maria Conceição dos Santos*
A ideia desse texto é chamar atenção para os efeitos emocionais que a pandemia da Covid-19 pode causar na vida de nós mulheres, homens, idosas, negros, jovens, crianças, LGBTQI+ negr@s, porém, vale a princípio ressaltar de antemão que mesmo em condições ausentes de pandemias a população negra já é o grupo com maiores comprometimentos mental em consequência de fatores diversos.
As aflições do desemprego e do subemprego é uma ameaça constante, as angústias de mulheres violentadas que vivem todos os dias a incerteza de suas vidas, a desesperança da juventude mal assistida e não escutada, ocupando um grupo daqueles que mais se matam em nosso país, as dores (que não são apenas físicas) de uma significativa parcela social daquel@s que não são acompanhados em suas doenças crônicas/ou a partir de um recorte de raça. E quando todos estes aspectos estão ferindo seus corpos, o sagrado é uma das formas de acolhimento possível, mas até nos Terreiros é preciso lidar com o sofrimento da violência causada pela intolerância presente em nossa sociedade. Todas estas cenas fazem com que a ideia de grupo de risco para pessoas negras tenha uma conotação muito mais ampla do que possamos imaginar.
A possibilidade de ampliação de quadros ansiogênos e depressivos, com a incerteza do que direta ou indiretamente o vírus pode causar, acentua sintomas que na verdade já existem em um cotidiano que é incerto e pode desenvolver tantos outros que desconhecemos por tocar em feridas que histórica e socialmente já estão marcadas em nós.
As palpitações podem ocorrer pelo medo de redução da renda, não ter o que comer, onde dormir ou o álcool em gel para higienizar as mãos. As dores de cabeça podem ocorrer quando a pessoa idosa de sua casa não pode ser a cuidadora da criança que não foi para escola por conta da dispensa para proteção ou quando a sua doença crônica não lhe dá a opção de fazer home office, sobretudo se a atividade de trabalho destes homens e mulheres negras for o trabalho doméstico, cuidadores de idosos, pedreir@s, coletores de lixo, motoboys, manicures, vendedores ambulantes e tantos outros.
E o que dizer de moradores em situação de rua, em sua maioria pessoas negras que vivenciam tal proximidade, não por opção, pois, seus corpos vivem doloridos com ou sem sintomas de gripe? O coronavírus para esta população alimenta a lista de doenças como: IST’s, tuberculoses e distúrbios mentais diversos.
Existe um provérbio africano que diz: “Estar sempre com pressa não impede a morte”. Esta poderia ser apenas mais uma frase de efeito que caberia muitíssimo bem para nos contar que a finitude é uma verdade para tod@s nós, mas a velocidade como a morte se faz presente para a população negra é algo que não nos dá chance de pensar de maneira vagarosa a respeito dela. Contudo, também existe uma expressão africana muito conhecida: “Ubuntu”, que quer dizer em uma tradução livre: “Eu sou porque nós somos”. Esta expressão vem para nos ensinar que diante de momentos hostis como este que estamos vivenciando, olhar e acolher os nossos é ensinamento ancestral e, cada um@, é importante dentro daquilo que pode oferecer.
Assim, com o olhar da Psicologia, é possível que agora tenhamos que lidar com nossas frustrações mais profundas a respeito da impossibilidade de alterar estruturas racistas tão consolidadas, que de tempos em tempos cutuca em feridas nossas e dos nossos em todas as instâncias, mas podemos fazer reflexões importantes, dar forma ao simbólico e buscar meios em coletividade, nos aproximar (mesmo sem nos tocarmos), nos perceber, nos defender frente às mazelas sociais que já nos desfavorecem continuamente, mas que o ‘corona’ surge como forma de evidenciá-las.
*Psicóloga (CRP: 06/109148); Membro da Roda das Pretas e da Aliança Pró-Saúde da População Negra.