“A kì í júbà afìmọsínúkú.”[1]
“Não há honra para quem morreu com seu conhecimento.”
Ana Luisa L. da Silva*
Um dia desses, Ìyá Omi Lade, compartilhou um provérbio em iorùbá em suas redes que me remeteu muito aos processos que a Aliança tem construído e feito parte desde a sua criação, lá em 2018 (mas que tem sido pensada e planejada desde 2017). Ela nos diz que compartilhar o conhecimento é perpetuar uma tradição. E esse é um dos valores fundamentais do nosso coletivo.
Em 2019, assistimos coletivamente ou individualmente a ascensão de um governo que tem como principal prioridade derrubar uma série de avanços que entende como ideológico: no campo da saúde, da cultura, da educação, das ciências, do meio ambiente e do trabalho, áreas que foram o foco de destruição. A população que sente primeiro, todas essas mudanças drásticas, é sem dúvidas a população mais vulnerável, entre pretos e pobres. Ao mesmo tempo, não é como se já não estivéssemos assistindo todas essas tragédias em anos anteriores, como se as políticas genocidas tivessem surgido somente em 2019. Isso está implantando no DNA brasileiro desde a sua formação.
A Aliança em 2019 atravessou uma série de mudanças, “apagamos incêndios”, nos sobrecarregamos, atingimos metas, tivemos acesso a conhecimento e informações fundamentais, realizamos planejamentos, acolhemos pessoas novas para a nossa rede. Sobretudo a Aliança trabalhou arduamente com nenhuma fonte de recurso financeiro, poucas mãos e muita vontade de que mais pessoas pudessem acessar e saber sobre o que é delas de direito e de criar um espaço de acolhimento para pessoas pretas que trabalham na área da saúde, da educação, da militância em geral. Todas essas conquistas são muito significativas e olhando para a nossa retrospectiva desse ano, pegamos de fato o boi pelo chifre e fizemos acontecer.
E essa é a realidade de muitos coletivos negros que resistem frente ao desmonte de políticas públicas, de enxugamento e cancelamento de editais, de pessoas adoecidas por não conseguirem doar o máximo que podem ou que estão tentando se balancear entre suas múltiplas camadas da vida: financeira, afetiva, trabalho, militância, materna (entre muitas outras). Tudo isso nos atravessou durante o ano de 2019, e agora a meta é nos estruturarmos a partir disso, das tantas mudanças e desafios que estamos vivendo em tantos âmbitos.
O que temos que nos lembrar sempre, dentro e fora do espaço do coletivo, é que essa é uma rede não só de trabalho e debates políticos (mesmo que seja sua razão de existir), mas que também é uma rede para estreitamento de laços afetivos, de cura, de afetividade. Tudo isso sempre coexistiu desde a sua fundação.
2019 foi difícil, com tantas notícias sobre genocídio da população negra, com tantos dados que comprovam o aumento da morte da nossa população, sobretudo homens jovens, de forma letal. Tantas pessoas que se foram pela violência do Estado, direta ou indiretamente. O medo nos paralisou durante esse ano, assim como a angústia de não poder realizar mudanças da noite pro dia, de não poder confortar pessoas ou impedir tantas situações de violência que vimos. Por um lado, avançamos e, por outro, a corda se aperta cada vez mais. Não podemos nos esquecer, jamais, que a militância não é nunca por uma motivação individual, é por uma estrutura que precisa ser derrubada. Temos um trabalho a ser feito para os que vêm.
Em 2020, eu espero que a Aliança se fortaleça cada vez mais e que nossas metas sejam certeiras rumo ao que buscamos para o futuro do coletivo. Que não nos abatamos com as coisas que “derem” errado lá na frente, ou que deram no passado, porque isso faz parte de um grande processo que estamos construindo com muito trabalho, com muitas mãos, mesmo que não fiquem de maneira permanente. Somos fruto de um trabalho que tem a participação de muita gente, de lugares diferentes do município e de fora dele.
Algo que eu, pessoalmente espero muito, é que as pessoas busquem e entendam sobre a importância da discussão da saúde para a nossa população; que ela é muito mais que um diagnóstico clínico, que a saúde integral nos afeta em todos os aspectos de nossas vidas. Enquanto vivermos dentro de uma estrutura extremamente racista e genocida, precisamos sim pensar enquanto povo e coletividade, porque essa estrutura afeta nossas vivências de maneiras muito semelhantes. Que sejamos menos individualistas nas nossas conquistas e que possamos partilhar mais do que temos, mesmo que seja pouco.
Em 2020, que mais pessoas se identifiquem com esse trabalho e que possam somar, de alguma forma, com seus saberes e suas trajetórias. Que possamos olhar para todos os passos que foram dados, coletivamente, e seguir em frente para o que desejamos enquanto sociedade civil organizada.
[1] Provérbio retirado de uma postagem no instagram de Ìyá Omi Lade. Link: https://www.instagram.com/p/B5DzaPXHQ21/?igshid=1qyhyoc8t3gjp
*Da Coordenação Executiva da Aliança Pró-Saúde da População Negra